A lacuna que David Bowie deixa na cultura pop nunca será preenchida. O luto dos fãs é compreensível, sincero e ainda irá doer por um longo período. No meu caso, acho que não lamento tanto a morte de um artista desde 2002, quando o telefonema de um amigo me avisou sobre o falecimento de Joe Strummer (Clash). Somente hoje consegui escrever sobre o assunto, uma vez que no último post escrito neste blog, em 2015, celebrei o lançamento do álbum Blackstar.
Nos inúmeros textos que li sobre Bowie, grande parte se referia à sua genialidade de abordar a própria morte iminente no vídeo da canção “Lazarus”, ao evocar o significado simbólico do personagem bíblico ressuscitado por Jesus, e também ao cantar o verso: “olha aqui para cima / estou no céu”. De fato, há clara menção ao tema na letra e na linguagem obscura de seu clipe, o que demonstra que a vida do músico foi uma obra de arte em si. Ou seja, nele legado artístico e narrativa de vida estão conectados, embaralhados.
Mas o aspecto mais fascinante na trajetória de David Bowie foi sua capacidade de assimilar os diferentes momentos da música, e aproveitar suas texturas sonoras para gerar diferentes sentidos na cultura pop. Em seus discos é possível observar traços de folk, glam rock, new wave, punk, e música eletrônica – entre outras fontes sonoras. Por esse motivo, a genialidade de Bowie está, sobretudo, associada à sua identidade musical sempre em processo criativo, pois ela não fecha em uma delimitação de gênero, mas é deliciosamente teimosa ao escapar às tentativas de definição.
Concordo com o belo texto assinado por Hari Kunzru no Guardian, pois Bowie sintetiza a liberdade de construção dos universos de pertencimento, e essa discussão é amplamente pertinente no cenário atual, quando nos deparamos com forças conservadoras que tentam delimitar indivíduos em unicidades semânticas. Um dos principais teóricos dos Estudos Culturais, Stuart Hall, problematizara que a questão multicultural é essencial à definição de democracia. E a diversidade musical (e cultural) de Bowie remete a esse tipo de pensamento.
Afinal, o frescor de seus discos reside na facilidade com a qual o músico soube absorver a diferença – e falo isso porque há, no mínimo, dez álbuns de Bowie que obrigatoriamente devem estar em qualquer lista séria de rock. Portanto, devemos celebrar David Bowie porque sua construção identitária estava sempre aberta e receptiva às novas possibilidades estéticas, o que significa, acima de tudo, uma postura artística que reforçou a liberdade de assumir quaisquer representações na cultura pop.